domingo, 15 de abril de 2018

SOBRE A INTELIGÊNCIA CORDIAL BRASILEIRA



Origem da linguagem e suas manifestações não-verbal, pré-verbal e verbal:

A origem da linguagem é um problema que remete à própria origem da cultura, pois antes da invenção da palavra escrita, antes da criação da expressão oral, antes da capacidade de comunicação verbal (mito-poética) houve algum nível de comunicação não-verbal (pré-ritual) e pré-verbal (ritual), isto é, sem a articulação de fonemas que representassem conceitos.

O que tornou possível a transição da expressão ainda animal (não-verbal) de gestos, gritos, rosnados, risos e demais expressões sem articulação simbólica (não verbal) fonética e gramatical (verbal), para a comunicação como a conhecemos?

Como o espectro comunicacional não-verbal e pré-verbal possibilitou a criação de uma ordem comunicativa verbal?

Qual tipo de atitude comunicacional humana pré-verbal precedeu imediatamente o processo de criação da própria linguagem verbal?

Qual o papel das emoções nas manifestações comunicativas pré-verbais? Será a emoção o elo perdido que conecta o momento da animalidade pré-verbal e não-verbal à gênese da palavra em sua forma verbalizável?

Haverá uma gramática das emoções que possibilita a existência da gramática das palavras?

Qual o mecanismo primordial que promoveu a transformação de emoções pré-verbais em verbos?



A linguagem da emoção e a teoria mimética:

Proponho-me a discutir a origem da linguagem, partindo da hipótese que suas manifestações pré-verbal e não-verbal surgiram na forma de uma linguagem de emoções, uma estratégia de sobrevivência que se utiliza de comunicação pré-verbal que possibilitou nos primórdios da cultura a convivência social.

Nesta perspectiva, as manifestações sociais das emoções, quando codificadas, são uma estratégia existencial que possibilitam a sustentação da existência do indivíduo, pois os motivos e justificativas para as reações emocionais são diretamente ligados aos comportamentos necessários à sobrevivência, o que revela um potencial racionalismo existencial pré-verbal.

Algo a ser ressaltado no âmbito da teoria mimética é que as emoções são a matéria prima da mimésis e o fator que desencadeia a crise mimética, pois a crise é o resultado do paroxismo da violência da emoções quando ficam fora de controle, e tal processo de descontrole é possível de ser superado pelo mecanismo do bode expiatório, que gera a catarse necessária para possibilitar o estabelecimento dos primeiros ritos sociais sagrados, que promovem o nascimento do primeiro símbolo, na forma da vítima sacrificial, cuja repetição cerimonial engendra o mito.

Assim sendo, a teoria mimética apresenta uma hipóteses na qual o processo social de ritualização permite o ambiente para o nascimento do verbo com a criação de mitos diretamente derivados da linguagem do ritual cuja origem é não-verbal.

O processo que origina a fala parte do fenômeno das emoções constantemente repetidas ritualmente, manifestadas por gritos, rugidos, rosnados, choro, riso e demais manifestações gestuais e sonoras possíveis, que ao serem articuladas repetidas vezes sofrem um constante aperfeiçoamenteo, e estabelecem padrões fonéticos, que se consolidam nas primeiras palavras carregas de significado ritual.

A palavra em sua origem primordial é, seguramente, um subproduto do ritual religioso sacrificial.

É interessante notar que a linguagem surge da crise que sacraliza e ritualiza a violência, que torna possível a constituição de uma ordem civilizacional.

O bode expiatório é ponto de convergência entre a violência e o sagrado, pois a violência banalizada gera a vingança interminável que destrói a comunidade, e a violência sacralizada estabelece os ritos e mitos que verbalizam as emoções socialmente estabelecidas pela repetição benéfica da crise mimética por meio do ritual, como instrumentos de mediação externa pacificadora da mediação interna que se originara da violência intestina potencial, esta última sempre atuante como um fator de entropia no meio social.

A comunicação oral origina-se da sacralização da violência, antes manifestada em emoções não-verbais de gestos e gritos que, num lance de dados do destino, pode ser solucionada pelo sacrifício do bode expiatório, cuja repetição cria a pedagogia do rito que rememora a criação do primeiro símbolo (o sacrificado) e estabelece um padrão de linguagem pré-verbal, na qual os gestos e gritos passam a ser significativos e permitem o aperfeiçoamento da linguagem ao ponto da criação do verbo oralizado.

O sacrifício é o acontecimento social primordial que cria a paz social necessária para a perduração das relações interpessoais nas origens da sociedade humana, e capacita uma associação de seres humanos em sua fase não-verbal com a linguagem das emoções, sua fase pré-verbal com a linguagem do rito, e, por fim, sua fase verbal com a linguagem dos mitos.

Ao desenvolver a pedagogia do sagrado, que limita a violência social, este ensino puramente religioso é compreendido como uma manifestação divina representada no rito, que revive o acontecimento que pacificou a violência, e, com o tempo, após infinita repetições, permite o nascimento da linguagem falada.

A linguagem em sua fase inicial é produto direto da manifestação religiosa que funciona como uma pedagogia das emoções convertendo a energia da violência em padrões rituais que geram a catarse por meio do ritual, a pedagogia do ritual permite a formação de narrativas mitológicas, pois os mitos em sua linguagem poética são a manifestação verbal deste registro do evento primordial.

Tanto faz se os mitos são gregos ou africanos, muito embora sejam encarados de um ponto de vista meramente literário atualmente, em suas origens, os mitos são sedimentações de ritos, nascidos em tempos na qual inexistia a própria linguagem falada.

Os primeiros ritos e sua pedagogia do eterno retorno estabilizaram-se em palavras.



O homem cordial:

Ora, por mais que sejamos induzidos a considerar que a realidade da comunicação nos níveis não-verbal (linguagem das emoções), pré-verbal (linguagem do ritual) e verbal (linguagem mitológica) como etapas atuantes nas origens da linguagem, tal percepção é falaciosa, pois cada pessoa ao nascer reinicia todo este processo de gênese da linguagem, que parte da comunicação emocional típica da primeira infância, com a criação de ritos e mitos da infância, e prossegue com a conformação de palavras vestidas de conceitos e símbolos durante a segunda infância e a adolescência, numa permanente pedagogia de autocontenção da violência instintiva do ser humano em suas relações interpessoais que ocorre durante a adolescência, até a desejável maturidade afetiva e intelectual da idade adulta.

Todavia, quando uma determinada pessoa está submetida a pressões permanentes, tanto em seu meio social e político, quanto nas relações mais próximas, sejam familiares ou de vizinhança, passa a determinar-se em suas atitudes cotidianas buscando sinais de perigo, com base em suas percepções linguística de amplo espectro (não-verbal e pré-verbal), e, assim, cria-se ressalvas comportamentais e pessoais, para se precaver dos perigos mais iminentes aos mais remotos percebidos numa espécie de sociedade em que impera o princípio da desconfiança.

O brasileiro, como digno representante de seus antepassados lusos, é este tipo de cidadão submetido ao absurdo social acima descrito como sociedade da desconfiança, seja oriunda nos mais altos níveis sociais pela permanente atuação de uma cleptocracia irresponsável com o bem comum, seja pela rotina de uma criminalidade que invade todos os aspectos do cotidiano da vida privada de cada cidadão.

Uma estrutura social baseada na desconfiança tende prevenir-se de uma potencial anarquia resultante de tal instabilidade que lhe é inerente, todo cidadão em tais circunstâncias é uma potencial vítima de crises sacrificiais, como ocorre quando se pratica um linchamento, em que a violência é descarregada sobre um culpado eleito por uma massa dominada pelo desejo de vingança, e cuja vítima eventualmente poderia ser inocente em relação à acusação que motiva o ataque contra si.

Neste ponto, é que resgato a noção cultural e antropológica brasileira de "cordialidade", como uma manifestação de inteligência social típica de sujeitos que necessitam sobreviver às adversidades de um ambiente na qual a confiança é o elemento mais desvalorizado.

Por exclusão, o brasileiro acaba por necessitar se refugiar nas relações interpessoais mais íntimas, seja a família, sejam as confrarias representadas por profissões, por associações com finalidades pias, políticas, desportivas ou mesmo por integrar sociedades iniciáticas das mais diversas matizes.

Em certa medida, os espaços públicos no âmbito da cultura brasileira, são zonas de perigo, ou de pura e simples exploração da boa-fé alheia, e, numa circunstância desta natureza, ao brasileiro somente resta desenvolver técnicas de convivência que apelam para elementos não-verbais e pré-verbais de forte caráter comunicativo em sua natureza emocional.

O brasileiro encara cada pessoa à sua frente como um predador em potencial, e há que haver algum elemento de salvaguarda social, que permita à percepção do sujeito a interação com menor o prejuízo potencial possível.

Nesta base é o estudo do nosso fenômeno cultural denominado de "homem cordial" é fundamental, como elemento constituinte da nossa antropologia social.

A valorização adequada dos aspectos positivos e o desenvolvimento dos modos de superação dos aspectos negativos relacionados ao fenômeno do "homem cordial" é uma das mais importantes contribuições da civilização brasileira para a humanidade.

O ponto de vista pessimista em relação à cordialidade brasileira é muito marcante em Sérgio Buarque de Holanda, enquanto que uma visão mais generosa é exposta por Gilberto Freire.

Creio que é muito interessante trabalhar a definição de "homem cordial" como uma forma de ser que não se prende aos elementos formais e lógico-racionais de uma filosofia da linguagem positivista, que somente considera a palavra falada e escrita, mas, sim, que se trata de uma percepção da humanidade que valoriza adequadamente o elemento emocional da comunicação humana.

O modo de ser nacional, com todos os seus defeitos de origem, e suas taras e deformações, é uma contribuição relevante, pois demonstra que um povo inteiro pode desenvolver mecanismos de mediação externa que suplantam conflitos que em outras culturas implicam em desastres, não é à toa que a história brasileira é uma narrativa de comédias no sentido dado por Aristóteles, ou seja, uma tragédia que não aconteceu, pois persiste um instinto de sobrevivência na psicologia das massas brasileiras que permitiu que grandes eventos históricos não sofressem seus últimos desenvolvimentos trágicos, talvez seja por isso que sejamos tão faltos de grandes guerras civis e revoluções sanguinárias, e, por outro lado, somos a nação na qual a legislação concessiva de anistias foi tão abundante aos longo de sua história.

O brasileiro, por ser afogado num ambiente de cotidiano hostil, desenvolveu a habilidade de perceber, em suas relações sociais e institucionais, o espectro emocional da linguagem (não-verbal e pré-verbal) e perceber sua condição de potencial vítima, seja diante de seu próprio governo, ou até mesmo diante do mais humilde de seus vizinhos, numa sociedade em que um povo ordeiro e trabalhador tem que conviver com uma anarquia institucionalizada pelos representantes do Poder governante.

Portanto, há um elemento de "inteligência cordial", definível como estratégia racional e emocional de sobrevivência do brasileiro, por este ter a percepção intuitiva de ser a potencial vítima de sacrificadores igualmente cordiais, e vice versa,

É a sociedade brasileira, praticamente, uma sociedade em guerra fria consigo mesmo, que sobrevive em tênue equilíbrio operacionalizado pelo fenômeno da "cordialidade".

Por fim, complemento que minha hipótese acerca deste tênue equilíbrio social possui entre seus elementos cordiais, que estão em constante troca de posições vítima/sacrificador, só é possível em razão de nosso forte substrato cultural fundado na revelação cristã, que nos permite perceber que a vítima é sempre inocente.

Werner Nabiça Coêlho

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