domingo, 16 de julho de 2017

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA EVOLUÇÃO CÓSMICA


A LEI DA EVOLUÇÃO CÓSMICA

Os entes finitos permanecem sempre dentro de uma normal, pois são constantemente, segundo graus, transmutados de uma ordem para outra, de um conjunto para outro, de uma tensão esquemática para outra. Assim, há um fadário que corresponde às possibilidades latentes não atualizadas, quando de um aspecto formal, e que são disposições prévias a futuras informações. O que um ser é, atualmente, em sua forma, não é tudo quanto ele o é em sua virtualidade. Este conjunto de sais minerais, que se torna uma maçã, [não é] tudo quanto é, pois há, em seu ser, disposições prévias para ser outras formas, que não a da maçã. Cumprida a sua função, esgotadas as suas possibilidades, que estão constituídas no seu processo, por dissolução intrínseca ou por fatores extrínsecos, torna-se outra coisa e volve para outra forma.

Assim, todas as coisas do mundo cósmico conhecem essas evoluções, que rompem o ajustamento e a ordenação anterior dos opostos (harmonia), para sofrerem saltos qualitativos e específicos. Na simbólica de todas as religiões, o sete é sempre símbolo dessa evolução, como vemos nos sete sacramentos, nos sete mistérios, nas sete cores, nas sete notas musicais, nos sete dias da semana, nos sete animais puros Noé, nos seus sete filhos, etc.

Assim como há um evolução elementar no quatro, na reciprocidade, há uma evolução superior no sete, que é a lei que acima acabamos de indicar. Desse modo, toda unidade é o produto de uma polarização de opostos, que em seus relacionamentos se interatuam, realizando uma forma, que dá a normal para as funções subsidiárias dos elementos componentes, que tendem a novas formas, que envolvem.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 202

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA HARMONIA

Conformações Estruturais do DNA

A LEI DA HARMONIA

A sexta lei, simbolizada pelo hexagrama, é a lei da Harmonia, cujo enunciado tivemos oportunidade de dar acima[1]. Não é o resultado de uma simetria dos opostos, mas a subordinação das funções subsidiárias dos opostos analogados à normal dada pela função principal, que é do interesse da totalidade.

Não só os entes formam conjuntos harmônicos nesse sentido, como são eles, por seu turno, elementos componentes de totalidades, de estruturas maiores, às quais eles se subordinam. A lei da harmonia impera, assim, em todas as coisas, e quando uma coisa rompe essa lei, tal rompimento é apenas aparente, porque, propriamente, rompe a harmonia de um conjunto, para integrar-se na harmonia de outro. Mas a lei da harmonia, que rege o universo, proclama que as funções subsidiárias dos elementos componentes, ordenados no conjunto das oposições, funcionam obedientes a uma normal, que é dada pela totalidade. Mas, como entre as coisas finitas há graus de ser, há graus de harmonia e a desarmonia se dá quando há quebra ou deficiência da normal principal, pela ação contrária das funções subsidiárias. A harmonia implica, assim, a desarmonia entre os entes, pois estes não permanecem sempre dentro da mesma totalidade, mas passam a integrar outras. Há, assim, mutações substanciais, mutações das formas das coisas, bem como da matéria delas, provocando saltos específicos, qualitativos. É a lei do sete - A Lei da Evolução Cósmica.



[1] "Quando o funcionar de todas as partes, como as respectivas subsidiárias, subordinam-se à normal dada pela totalidade, temos então, a "harmonia" no ser" (p. 200)



Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 201

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA FORMA


A LEI DA FORMA

Todas as coisas são determinadas como tais pela forma que tem. Esta, em conjunto com a sua matéria, é constitutiva da natureza da coisa. Uma coisa é a sua forma, mas existencialmente, onticamente, é o conjunto dos opostos principais.


Ela atua e sofre na proporção dessa natureza. A reciprocidade, que se dá entre os opostos, dá-se dentro de limites estabelecidos, que são a forma da coisa, a forma concreta, a forma in re, pois, do contrário, a coisa realizaria ou sofreria desproporcionadamente à sua natureza, o que é absurdo, como o mostramos em Filosofia Concreta. Uma coisa, para ser devidamente conhecida, exige que seja quinariamente considerada segundo a sua lei de proporcionalidade intrínseca, pois as suas possibilidades, bem como o seu atuar são proporcionais à forma concreta que ela tem.


Essas cinco leis, até aqui examinadas, regem contemporaneamente, todo ser, regem-no simultaneamente, porque qualquer ser finito, tem uma forma, tem uma reciprocidade, que surge das relações entre os opostos, que constituem os aspectos manifestáveis de sua última subsistência, do seu hipokeimenon. Assim, se a substância, é dada pela substância universal, que é criada pelo Hen-Dyas aóristos.

A forma é, assim, o arithmós eidetikos in re da coisa, que é simbolizada pelo 5, daí a estrela de cinco pontos ser o símbolo do Homem, porque este é capaz de captar as formas das coisas, embora intencionalmente, isto é, proporcionalmente à sua esquemática.

Conhecer um ser formalmente e a reciprocidade que decorre da interactuação dos opostos relacionados, que constituem a sua substância, é ter do mesmo uma visão quinaria e, portanto, mais ampla.

Todo ser finito constitui uma unidade formada por sua totalidade, o arithmós plethos, número da sua totalidade. Esta tem uma coesão, que coerência as suas partes, os elementos constitutivos, diadicamente opostos. Como totalidade, há uma função principal, a que pertence ao todo, à qual se subordinam as subsidiárias dos opostos, que se analogam na substância universal, que é o hipokeimenon do ser. As funções subsidiárias subordinam-se à principal, que é obediente ao interesse da totalidade. Quando o funcionar de todas as partes, como as respectivas subsidiárias, subordinam-se à normal dada pela totalidade, temos então, a harmonia no ser.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 200-1

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA RECIPROCIDADE


A LEI DA RECIPROCIDADE

Em todos os entes, considerados em sua oposição intrínseca e extrínseca, nas relações que se formam entre os opostos, há uma interatuação, uma reciprocidade interatuativa.


Estamos aqui no mundo das coisas que compõem o nosso cosmos, que é chamada por muitas doutrinas a esfera do quaternário, cujo símbolo é o quatro.


Se todas as coisas podem ser vistas unitariamente, podem também o ser diadicamente, ternariamente (como feixe de relações e também como tendo um começo, meio e fim) e, quaternariamente, como resultado da interactuação dos opostos. Se a lei da relação é a que rege os seres como série, a lei da reciprocidade rege a evolução primária e fundamental dos entes finitos. É também a lei da evolução fundamental para o pitagorismo. Pois esse interatuar dos opostos não surge apenas quando o ser principia, mas também no decorrer do processo de sua duração, de seu existir, pois, enquanto o ente é, nele há um polemós, uma luta constante entre os opostos, os quais se determinam mutuamente, de modo diverso, o que gera a heterogeneidade intrínseca do ser singular.

Mas, a reciprocidade, que se dá entre os opostos, realiza dentro de uma lei da proporcionalidade intrínseca do ser, pois seu atuar e seu sofrer são proporcionados à sua natureza. E eis que a quinta lei pitagórica, que rege todas as coisas - A lei de proporcionalidade intrínseca ou lei da Forma Concreta.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 199-200

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA RELAÇÃO


A LEI DA RELAÇÃO

Como os opostos são correlativos, imprescindíveis um ao outro, porque a potência materiável tem sempre uma forma, esta ou aquela, para ser, exige o ato-formativo, a determinação, pois o determinante só é tal quando há o determinável, pois como pode algo realizar a determinação sem algo que seja determinável para ser determinado?

A lei da relação é, pois, fundamental dos seres criados, pois estes não são sem a correlação entre os opostos. E é dessa correlação que surge algum ente finito, porque este tem uma forma e uma matéria, para usarmos as expressões aristotélicas.

Mas essa relação não é como as relações acidentais que o ente depois manterá com outros seres, aos quais se refere. Essa relação é principal, pois, sem ela, o ser não surge. É por essa razão que a relação é a terceira categoria pitagórica. E nenhum ser pode ser, devidamente, conhecido se não for considerado do ângulo da unidade, das oposições intrínsecas e das relações entre as oposições, que lhe dão origem e ser.

Nas relações, que se formam entre os opostos principais, surge o arithmós in re, pois a coisa surge da sua proporcionalidade intrínseca, da cooperação da forma e da matéria. A coisa finita, considerada como forma in re, imita a forma eidética, que é do poder do ser, pois tudo quanto há, houve ou haverá, repete, de certo modo, uma perfeição do ser. Por essa razão, as coisas criadas participam das perfeições das formas exemplares na ordem da eternidade, das formas eternas.

Nas relações, que se formam entre os opostos principais, surge o desequilíbrio e o equilíbrio, porque ao ser informada uma matéria, há graus de proporcionalidade que caracterizam o modo de ser específico da coisa quanto à sua perfeição específica. O equilíbrio e o desequilíbrio surgem como categorias pitagóricas, subordinadas à oposição, são por isso sub-categorias. Também o Mega e o Micron (o Grande e o Pequeno, de Platão) são sub-categorias da oposição, pois o grande refere-se à máxima determinação e à máxima determinabilidade, e o pequeno à mínima determinação e a mínima determinabilidade, pois os seres criados estão mais ou menos em relação à perfeição específica do eidos exemplar. É por essa razão que Platão falava ao Grande e ao Pequeno da Díada indeterminada, que é a díada menor, pois a grande díada é a do Hen-Prote e do Hen-Deuteron, do Segundo Um, que é o Hen-Dyas aoristos.

Nas relações, que se estabelecem entre os opostos, há uma interatuação entre eles, pois o ato-formativo, ao informar a potência materiável, e que tem o papel do demiurgo platônico, como vimos, ele é limitado pela matéria, pois só pode informar proporcionalmente à sua natureza de causa eficiente, mas também proporcionadamente à capacidade de determinabilidade da potência-materiável. Esta, por sua vez, sofre a ação daquele, mas exerce uma resistência àquele. Tal resistência é fácil de verificar, e, aqui serve como exemplo, quando tomamos a matéria já informada, como o barro que, como matéria do tijolo, exerce uma ação delimitante à forma que lhe procura imprimir a causa eficiente.

Há, assim, uma interactuação entre ambos, o que levou os chineses a conceituar o Yang, como ativo-passivo, e o Yin como passivo-ativo. Dessa interactuação, surge a quarta grande lei pitagórica - a lei da reciprocidade.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 198-9

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA OPOSIÇÃO


A LEI DA OPOSIÇÃO

Vimos que tudo quanto é finito é produto dessa oposição. Estamos, pois, em face da Lei da oposição, cujo símbolo é o dois. Todas as coisas finitas são compostas de duas ordens de ser, no mínimo. E, na coordenação dos elementos que a compõem, formam eles díadas opositivas, que são expressas através de todos os pares de contrários, que constituem os polos, não só de todo o filosofar, como também de todas as mais primárias classificações e divisões humanas.


Da oposição entre o princípio ativo-passivo do determinante e do passivo-ativo do determinável surge toda a heterogeneidade dos seres finitos. A determinação, vimos, estabelece o limitado-ilimitado, pois todas as coisas são formalmente ilimitadas, mas materialmente limitadas. Podem todas as coisas ser visualizadas como uma unidade, como uma totalidade, e podem ser visualizadas como um feixo de oposições dos contrários, afirma o pitagorismo. Nenhum conhecimento é perfeito sobre alguma coisa que não a examine como uma totalidade (unidade) de aspectos opostos, classificáveis diadicamente.



Tudo quanto é criatura apresenta essa oposição, que rege todas as coisas. Duas leis foram, então, especificadas: a lei da unidade e a lei da oposição.



Mas, os opostos são imprescindíveis (os opostos do ato-formativo e da potência-materiável), pois nenhum ente finito deles se exclui, pois são eles os elementos fundamentais. Também a oposição fundamental, que se manifesta em todos os seres, é o princípio de todos os entes finitos. É por essa razão que a oposição é a segunda categoria dos pitagóricos. Mas os opostos estão frente a frente, um é referido ao outro, correlativos ambos no sentido pitagórico, porque o ato formativo é o ato formativo da potência-materiável, como a potência materiável é a potência materiável do ato formativo, ambos tendo sua base, seu kipokeimenon, em sentido grego, sua última subsistência na substância universal.

Da referência que se forma entre um e outro, desse re-latum, desse estar ante outro, necessariamente, desse referir-se a outro, ad áliquid, surge a relação, que constitui a lei de todas as coisas, a lei da série.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 197-8

sábado, 15 de julho de 2017

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA UNIDADE





LEI DA UNIDADE

É a lei da integral, pois todas as coisas que são, de que modo forem, constituem uma unidade. Ser, de qualquer modo, é unidade, é ser um. Só o nada não é unitário, porque o nada não é. A lei da unidade preside todos os seres que participam da unidade suprema do ser, num grau intensistamente mais baixo, proporcionado à sua natureza. A máxima unidade é a unidade absoluta de simples simplicidade, do Ser que é apenas ser e sem deficiência portanto, todo o ser, o Ser Supremo, o Um.

Porque todas as coisas estão "como numa prisão" no Ser Supremo, todas participam dessa lei, que rege todas as coisas.

Tudo quanto é finito e unitariamente o que é e tende a tornar-se parte integrante de uma unidade. Nada se dá que não seja unitariamente, segundo os graus intensistas da unidade. Essa lei preside todas as coisas.

Deste modo, o número aritmético 1 simboliza a Unidade e, por isso, pelo simbolizar tudo quanto é e de que modo for um.

O Ser Supremo, Um, como forma, é o Pai, gera o Um como "operatio", como operação, através de uma procissão "in intra", pois o Um criador é o Filho, gerado por aquele. Nas religiões, o Pai e o Filho surgem como símbolos da correlação mais estreita, pois o Filho é filho do pai e o Pai é pai do filho, de modo que a afirmação de um é a afirmação do outro. Transferindo-se para a linguagem filosófica, em sentido pitagórico, o "Hen Prote" é existencial e essencialmente ele mesmo, imutável e eterno, porque o Ser, enquanto Ser, é absolutamente Ser. Mas esse ser é ativo, atua, realiza, opera. E o operar implica a escolha, a intelecção (o intelecto). O "Hen Prote" é Vontade, como querer, palavras que nos podem simbolizar a omnipotência do Ser Supremo, que pode tudo quanto pode ser. Mas, ao realizar algo, seu operar é intelectual, escolhe o que será atualizado. O Ser Supremo, como operação, é o "Hen" que gera a Díada indeterminada, que corresponde ao ato formativo e a potência materiável, para permanecermos, de certo modo, na linha do aristotelismo, ou melhor, aproveitando a terminologia aristotélica para auxiliar a exposição do pensamento de Pitágoras, pois o ato formativo, o determinante, e a potência materiável, a determinabilidade, são apenas vetores, que surgem simultaneamente do ato criador do "Hen Dyas aoristos", pois é o Filho, que é o Criador, porque é o Ser, quando "opera", que cria. Mas, uma não se separa abissalmente da outra, porque a determinação implica a determinabilidade. Nossa mente, que é abstrativa, separa em conceitos o que é um só na realidade, mas que apenas se distinguem formalmente, pois o "Logos" do Um criador gera, em seu atuar, a ação da díada indeterminada, cujo "Logos" é dual, pois a ação implica o atuado, pois esta se dá inerente ao atuado e dele não se separa, como muito bem mostrou Suarez. Dessa forma, na criação, esta pertence à criatura, que surge da Díada. O "Hen" (Filho) atua realizando a ação, mas esta é uma modal absolutamente inerente ao atuado. Assim, mas próximo de nós, a ação do movimento de um roda é inerente de modo absoluto à roda. A ação não é uma modal do Ser Supremo. Se fosse, ele sofreia mutações. Seu atuar consiste em realizar a ação e a ação é determinadora de uma determinável. A criação é da criatura e não do criador. Esta tese já a demonstramos com exuberância de provas, em "O Homem perante o Infinito" e em "Filosofia Concreta", para onde remetemos o leitor.

É com o "dois" que surgem as coisas finitas, e o dois, aqui, simboliza a Díada. Na díada indeterminada, temos, como positividades formalmente distintas:

a determinação indeterminada = "o poder" (potência ativa), de determinar ilimitadamente; e

a determinabilidade indeterminada = "o poder" (potência passiva) para ser determinada ilimitadamente

O ato pode sempre determinar e a potência é sempre determinável. Mas uma determinação absoluta é mpossível, porque seria um ato, e haveria uma contradição "in adjectis", pois o infinito é o poder sem fim de determinar e se tudo fosse já determinado, o determinado haveria alcançado o limite de sua determinação. E, ademais, alcançaria o quantitativo em ato, o que é absurdo.

Portanto, o ato de determinar implica um limite, o limite de determinação, e ele limita a coisa determinável. Mas, o que está determinado é, ilimitadamente, o que está determinado, portanto, o que recebeu uma determinação é, enquanto tal, ilimitadamente ele mesmo, mas limitado pelo que não é ele, e, também, pelo que é ele, pois o é até onde é o que é. Desse modo, a ação criadora, a criação, realiza um limitado, que é, enquanto ele mesmo, ilimitadamente ele mesmo, mas que é limitado por si mesmo, pois só é o que é até onde é o que é, e limitado pelo que não é ele, que é o que é possível de ser, que não está contido em sua natureza.

Assim, a díada indeterminada é potencialmente infinita e é tudo quanto pode ser determinado: é, simultaneamente, o infinito potencial de determinar e o infinito potencial de ser determinado. Nesse caso, o ato-formativo pode determinar sem fim tudo quanto pode determinar e a potência-materiável, que é passiva, pode ser determinada sem fim, em tudo quanto pode ser determinado.

Assim se aplica, pois, o infinito potencial quantitativo, e não o atual. Enquanto este é absurdo, não o é aquele.

Ora, a díada indeterminada não tem limites em si, é ela indeterminada, ilimitada enquanto tal, mas é limitadora em seu atuar. Não são ambas absolutamente independentes, pois são criadas pelo "Hen". Dele dependem, por isso não tem a absoluta simplicidade do Ser Supremo, nem a sua infinitude, que é eterna, não tem a infinitude atual, mas a infinitude potencial, o poder ser ativo e passivo sem fim.

E é aqui que está o funcionamento da criação ab-aeterno dos pitagóricos de grau elevado. Pois a díada indeterminada não tem um princípio no tempo, pois o tempo implicaria a determinação e coisas determinadas. O tempo começa quando o ato formativo modela a potência materiável. O tempo é das coisas determinadas limitativamente. Desse modo, a díada, que não é eterna, pois não é a "duratio tota simul", porque, como veremos, uma limita a outra e, portanto, dão-se entre elas relações das mais diversas, que em breve analisaremos, e como não é temporal, porque o tempo se dá na sucessão das coisas determinadas, que são por aquela díada gerada, ela pertence a uma duração que não é "tota simul", totalmente simultânea, mas que também não sucede, a qual inclui, como espécie, a sucessão, que é o tempo. A duração da díada é a eviternidade, é o "aevum".

Mas, tanto uma como outra (o ato formativo e a potência maeriável) são positividades e não meros nadas. Se se distinguem formalmente, distinguem-se, também, na realização do ente determinado. São duas positividades, duas posições, duas teses, são téticas. Uma está ante a outra "ob" à outra:
                                            
posição                   "ob"                    posição

são assim "opostas".

A Díada, enquanto ela mesma, é a substância universal, pois é dela que são geradas todas as coisas. Na linguagem aristotélica, a matéria é a substância primeira ("ousia prote") e a forma é a substância segunda ("ousia deutera"). Um ser finito é a composição dessas duas positividades. Pois essa é a tese pitagórica, com a distinção que a substância das coisas é uma só, a díada na coisa, mas formalmente distintas, isto é, o "logos" de cada uma é distinto da outra.

Desse modo, tudo quanto há finito é produto dessa "oposição". E é essa razão porque se a substância é a primeira categoria pitagórica, é a oposição a segunda, porque é da conjunção das duas positividades ato-formativo e potência-materiável, que surge qualquer ser finito.

Não nos podemos furtar a uma análise sobre tema de tal relevância, como seja o de ato e potência. Em nossos livros "Filosofia e Cosmovisão" e "Ontologia e Cosmologia", examinamos as diversas maneiras de considerar esse tema fundamental do aristotelismo, como também da escolástica e da própria filosofia.

Nesses trabalhos, que antecedem outros mais completos que pretendemos realizar, está delineada, em linhas gerais, a nossa posição. Ante os que afirmam a distinção real-real, ou real-física, entre ato e potência, nós nos colocamos do lado dos que negam esse diástema, que agravaria a crise entre os dois modos fundamentais do ser. Sabemos que os tomistas afirmam a distinção real-real, enquanto os escotistas afirmam apenas uma distinção formal. Os primeiros declaram fundar-se não só em Aristóteles, como em Tomás de Aquino. Quanto ao primeiro, não opomos a menor restrição, mas quanto ao segundo há dúvidas sérias de que se fosse o verdadeiro pensamento do aquinatense. Nas obras citadas, expusemos as razões fundamentais do escotismo contra a distinção real-real ou física.

Esta provocaria uma afluxo desmedido de aporias e impediria a solução de outras, que surgem da colocação da tese criacionista.

Por sua vez, oferecem os tomistas também seus argumentos. É impossível, aqui, fazermos a análise e a crítica dessas posições, que, como já dissemos, será matéria de futuros trabalhos nossos. Contudo, queremos por ora chamar a atenção para um aspecto que é de magna importância do filosofar. A filosofia, embora tendendo a alcançar a maior objetividade e a isenção de tomadas de posição opinativas e valorizadoras, inegavelmente, ante o tema do ato e da potência, há a presença de um preconceito da "doxa", que, a nosso ver, influiu profundamente em todo o processo filosófico do ocidente. Este preconceito, de origem aristotélica, consiste em desmerecer a potência em face do ato, e desvalorizá-la a ponto de despojar-lhe o próprio ser, transformando-a em nada. Esse preconceito, cujas raízes emergentes e predispotentes, permitir-nos-ia uma análise psicológica de grande extensão, deve ser denunciado, sob pena de a filosofia não poder alcançar novos lanços do seu caminho a resolver, consequentemente, muitas das aporias, que até então pareciam insolúveis. Se passarmos os olhos pelo pensamento hindu, egípicio e chinês, verificamos que, nesses povos, ato e potência estão colocados no mesmo pé de igualdade axiológica e ontológica.

Entre os gregos, Pitágoras, Sócrates e Platão valorizaram, igualmente, ato e potência. Veja-se a definição do ser dada no "Sofista". O "ser" é, fundamentalmente, "potência" (poder). É "ser" toda potência determinativa, do mais alto ao mínimo grau, e é ser toda a potência determinável, do maior ao mínimo grau, em qulaquer momento, por mínimo instante de tempo. Platão era um "potencialista", seguindo, assim, a linha pitagórica.

A díada indeterminada, no pitagorismo, afirma a potência determinadora (ativa) e potência de ser determinada (passiva). Nós, nos livros citados, defendemos a tese de que todo ser, por mínimo que seja, caracteriza-se pela "presença" e pela "eficacidade". Todo ser é eficaz. O ato é a eficientização dessa eficacidade, e a potência é a eficacização da eficienticidade. A potência não é um não-ser, mas um modo vectorialmente inverso do que é, em ato. A potência é virtual e fundada na eficacidade. Em "Filosofia Concreta" mostramos que fazer é ser feito, porque, quando se faz alguma coisa, alguma coisa é feita. A ação determinadora exige uma correspondência determinável, pois, se não existisse essa correspondência, a ação determinadora se aniquilaria, porque atuaria sobre o nada e atuar sobre o nada, é nada atuar. A idéia de determinação implica a determinabilidade. Assim, à potência infinita da determinação tem de corresponder a potência infinita da determinabilidade. Esse pensamento, que já expusemos e que pretendemos justificar de modo exaustivo e apodítico em obra especial, corresponde, adequadamente, ao pensamento franciscano. A valorização, que o mesmo fez da matéria, da potência, em suma, levou muitos de seus adversários a acusarem, sem fundamentos sérios, São Francisco de ser panteísta, e toda a escola franciscana, na filosofia, de realizar obra panteísta, portanto, herético, ante a Igreja. Não precisamos defender os franciscanos dessa acusação, porque eles já se defenderam com brilhantismo e mostraram com suficiente habilidade que seus adversários podiam merecer a pecha de panteístas com mais razão do que eles.

Este comentário que acabamos de tecer, pretende apenas mostrar que a nossa interpretação do pitagorismo está apoditicamente bem fundada e que esse é o pensamento, também, de Platão e Sócrates, o qual perdura ainda no pensamento ocidental e representa uma vitória sobre um dos momentos preconceituosos que, a nosso ver, foi dos mais perniciosos para a filosofia.

Não é de admirar que o aristotelismo, apesar de sua grandeza, da sua pujança, tenha criado preconceitos, pois sabemos que, psicologicamente, Aristóteles, como revela sua obra, foi sempre um homem movido por preconceitos, por tomadas de posição prévias, que desfiguravam ante seus próprios olhos, a obra dos outros autores. Aristóteles, apesar da sua genialidade, falsificou, caricaturizou o pensamento alheio, como se vê quanto aos pitagóricos, quanto a Anaxágoras, a Empédocles, a Heráclito, até ao seu próprio mestre, Platão.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 191-7